Seguia na direção de Antonina. Na Estrada da Graciosa o ônibus se arrastava pelas curvas estreitas e sinuosas, que por muitas vezes atraiçoaram, ribanceira abaixo, seus peregrinos mais apressados. Acompanhava a paisagem com meu olhar sereno, regulado, recheado de ternura e humildade, de suavidade e dor, entregue ás ilusões e desvarios, como se ainda fosse aquela criança que brincava nas ruas de Antonina.
O ônibus seguia lento e eu, agora sem devaneios, segurava toda a ansiedade do azul monótono de Antonina. E depois de várias curvas lentas, logo lá embaixo, ela, aos poucos, aparecia adormecida, calma, patética, coberta por uma branda névoa azulada, como se fosse uma fotografia antiga. Naquele momento ela era uma canção antiga, um brinquedo esperançado para o dia de Natal, mas depois de algumas curvas, como num súbito arranco, temi pelo nosso encontro, quando nos encontrássemos em suas ruas estreitas e disformes.
Por fim o ônibus desceu a Serra. Através da janela eu acompanhava a vegetação rasteira, os muitos pinheiros, os arroios de águas límpidas e tranquilas que irrigavam os sítios e chácaras que se estendiam pela beira da estrada do São João. Sob uma ponte metálica, um riacho corria tranquilo e algumas meninas, na margem, cirandavam sob a sombra das árvores. Um menino, sorrateiro, atirou-se nas águas e, como um boto festeiro, tentou seduzi-las com arrojadas piruetas. Elas gargalharam, como se apreciassem o esmero do menino, mas era cedo, a noite não chegara, e todas voltaram aos motes de onde pararam.
O rigor monolítico daquela paisagem que eu tanto conhecia obrigava-me a mergulhar na vaga sensação de que tudo que se estendia à minha frente tinha uma representação - e isso era um consolo -, pois para mim cada olhar tem um sentir, como cada aventura tem seu tédio, e que tudo eram dimensões e não passavam de um estado de alma. E em busca desse paliativo eu seguia ansioso na direção de Antonina ou da fuga de mim mesmo, de meus próprios fantasmas, que caminhavam ao meu lado pelos rígidos caminhos da ilusão e do real.
O ônibus estava bem próximo do centro. Passara o bairro do Batel e se aproximava da velha Estação Ferroviária. Através da janela eu olhava as casas antigas e tantas outras sem beirais, como se quisssem esquecer seus fantasmas. Mesmo assim tudo era um sentir, uma rajada de lembranças. Abri a janela e logo senti o veranico de Antonina. O Sol perdera a plenitude e algumas nuvens impropriavam a tarde. O ônibus, enfim, chegou defronte à antiga Estação Ferroviária. O prédio, construído no final dos anos dez, em estilo inglês, ainda mantinha sua imponência, a torre do relógio, o sino, as placas de bronze homenageando seus construtores e políticos. Uma lembrança que me oprimia era a de Rosane, minha primeira namorada, acenando para mim da janela do vagão, num adeus definitivo. Lembrei das matinês nas tardes de domingo, da hesitação do toque das mãos e lamentei os beijos inocentes que não foram roubados em frente ao portão. Levei as mãos ao rosto e dei um breve sorriso. Não pensei em um grande fracasso, nem em arrependimentos, apenas lembrei de Rosane e onde ela estaria naquele momento em que uma aspereza na garganta preludiava o choro. A ficção embalada o sonho e o passado vinha acompanhado de saudade e dor; uma dor útil e necessária que me abastecida a vida. As imagens se sucediam e eu as provava uma a uma, como se sentisse o sabor adocicado dos lábios de Rosane que eu nunca experimentei.
Duas quadras depois eu avistei o Grupo Escolar Brasílio Machado. Agora eu era aquele menino de avental branco que corria pelo pátio de areia, sob as castanheiras e depois atravessava o caminho de cimento que cortava a relva plana. Meu olhar subiu os degraus de mármore da escada larga. No corredor eu cruzava pelas professoras de guarda-pó branco levando em suas austeridades a solidão das causas nobres.
Segui meu destino e logo me deparei com o antigo Estádio do 29 de Maio. Não havia mais indícios da imponente arquibancada, onde meu avô Carvalhinho costumava se sentar comigo nos finais de semana para assistir aos jogos do “glorioso”. Mas eu estava ali, dentro do campo, sob a meta, olhando a bola que vinha na minha direção como uma águia ameaçadora.
Segui meu destino e logo me deparei com o antigo Estádio do 29 de Maio. Não havia mais indícios da imponente arquibancada, onde meu avô Carvalhinho costumava se sentar comigo nos finais de semana para assistir aos jogos do “glorioso”. Mas eu estava ali, dentro do campo, sob a meta, olhando a bola que vinha na minha direção como uma águia ameaçadora.
Tudo o que via trazia-me a vida de volta, mas a imprecisão dos anos repousava em mim um sentimento de ternura ameaçadora, Tudo era tão íntimo e notório que eu não intervinha naquele entusiasmo que desalinhava meu presente e reconstituía meu passado. Mas, de súbito e contrafeito, as coisas à minha volta, me desmontavam de toda a lisura e eu quis por um instante deixar de amá-las, esquecê-las até, para que eu pudesse não mais sentir essa dor pretérita.
Cheguei à Praça Coronel Macedo. Fazia um clima confortável e a praça, escrava do silêncio e do mercúrio, adormecia em volta do coreto sem retreta. Meus olhos não renunciavam a nada. Através das janelas das casas vizinhas, eu perseguia as silhuetas dos corpos, as vozes que se confundiam com as das televisões ligadas, o frescor da tarde que revigorava os ambientes e mais além, os quintais que adormeceriam no breu da noite. A tudo eu dava um sentindo, uma regularidade, como se toda a matéria fosse a expressão de meu estado de alma. Era um não-ver desencadeado por uma torrente de esperança que emergia de meu mundo sensível, como se eu fosse um pinheiro eriçado sobre a terra pantanosa. Tudo teve um sentido quando me deparei com a praça vazia... Ali encontrei o meu duplo amor e dei forma, feitio, ao meu dom atemporal para o viver e o sofrer.
As folhas caíam das árvores, leves e ociosas, e quando chegavam ao chão constatavam que o Sol alcançara o equinócio de março. Naquele instante não havia mais nada dentro de mim, restando-me apenas contemplar o ocaso do entardecer... Era Outono em Antonina...
14 comentários:
Bravo, querido amigo, bravo. Sinto mesmo uma pontinha de inveja: Curitiba não se compara a Antonina, não pelo menos nas lembranças que não tenho daqui nem de lá.
Estava estudando quando abri o blog e li o seu texto, então pensei no idioma em que estudava para lhe responder.
"I am the captain of my soul" - Eu sou o comandante de minha alma -.
Parabéns pelo texto.
valeu, meus amigos.
Parabéns, Luiz, pelo texto. É muito bom, às vezes, lembrar do nosso passado. Tempos bons que não voltam jamais, infelizmente.
Alguns dizem que relembrar o passado é ser como museu, mas isso não é verdade. Lembranças do 1º amor, dos 1ºs anos escolares, dos bons amigos, que ainda estão conosco, outros já se foram para o outro lado, outros que se mudaram, tomaram outros rumos na vida e nunca mais os vimos, nem sabemos onde estão, das brincadeiras sadias que hj não se vê mais. É muito bom pois tiramos muitos exemplos daqueles tempos para podermos transmitir aos nossos filho.
Mais uma vez PARABÉNS, pelo texto.
É tudo verdade, Júlia
Grato pelo carinho.
Eu me lembro de tudo. Estava lá. Lembro ainda da minha avó e minha mãe me esperando no portão. O tempo é implacável, Deus quer assim.
... É outono em Antonina ou seria o 'outono' de Antonina?
O cronista é experimentado. Tem perspicácia e estilo suficiente para repetir, em relação a Antonina, o que José Condé reproduziu em relação à decadência do império dos coronéis e dos fazendeiros de Minas,mortos-vivos da primeira república.
Antonina, em plavras, louva seu passado, em ações destrói sua história. Haja vista, por exemplo, aquele 'palacete' que estão fazendo no canto da praça, tribufú erguido em cima do passado para a vaidade dos 'novos ricos' do pedaço... (.... pelo menos não são ricos da política; são ricos por trabalharem....)
Luiz Henrique, lendo o teu texto, senti tão presente um passado em que eu fazia parte em tempo integral! Hoje, alguns elos se romperam, tanta coisa mudou...mas minha Antonina continua lá, tão bela quanto antes. Ainda bem que ainda encontro amigos de infância que me fazem relembrar do tempo em que nossa cidade era todo o nosso universo e para nós era e sempre será "O orgulho do Brasil"!
Ai moçada (SIC) quanta nostalgia vejam a sutil diferença entre um Sábio e um Idiota
O sábio:
Ei você que tem de oito a oitenta anos não fique aí perdido,
como ave sem destino pouco importa a ousadia dos seus planos
eles podem vir da vivência do ancião ou da inocência de um menino
o importante é você crer na juventude que existe dentro de você
Meu amigo, meu compadre, meu irmão, escreva sua história
pelas suas próprias mãos Nunca deixe se levar por falsos líderes
todos eles se intitulam porta-vozes da razão
pouco importa o seu tráfico de influências pois os compromissos assumidos
quase sempre ganham sub-dimensão o importante é você ver o grande líder que existe dentro de você Não se deixe intimidar pela violência
o poder da sua mente é toda a sua fortaleza. Pouco importa este aparato bélico universal
toda a força bruta representa nada mais do que um sintoma de fraqueza
O importante é você crer nesta força incrível que existe dentro de você
O idiota:
Nossa, nossa
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego
Delícia, delícia
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego
Sábado na balada
A galera começou a dançar
E passou a menina mais linda
Tomei coragem e comecei a falar
Nossa, nossa
Lá na terrinha...
Via internet - E-mail
Após um dia de trabalho na colocação de postes de iluminação, o mestre-de-obras reúne seus operários para um balanço:
- Arnaldo e Júlio?
- Colocamos dezoito postes!
- Juventino e Amaral?
- Colocamos dezenove postes!
- Joaquim e Manuel?
- Colocamos dois postes!
- Dois?! - berrou o capataz. - Como vocês explicam isso? Os outros instalaram quase dez vezes mais!
- Mas o senhor viu o tanto que eles deixaram para fora da terra?
Guardião do portinho, cumé qui fica ki no reino:- PÕE TUDU PRA DENTRO O DEXA PRA FORA ??????????????
Ah.... pradenttro, né, safado?????/
-----------------------------------O Guardião do Portinho parafraseando Nélson Rodrigues, para os que não são consagrados na literatura brasileira, não confundir com Nélson do Batuqueiro.
O antoninense
O que atrapalha o antoninense é o próprio antoninense. Que Antonina formidável seria se o antoninense gostasse do antoninense.
Parabéns, guardião!
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