"Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica Antonina, não amo-te ao meio, amo-te à maneira inteira."
Edson Negromonte.



quinta-feira, 29 de julho de 2010

CONTOS ANTONINENSES


Outono em Antonina
Por Luiz Henrique Ribeiro da Fonseca

Seguia na direção de Antonina. No meio da Estrada da Graciosa o ônibus se arrastava pelas curvas estreitas e sinuosas, que por muitas vezes atraiçoaram, ribanceira abaixo, seus peregrinos mais apressados. Acompanhava a paisagem com meu olhar sereno, regulado, recheado de ternura e humildade, de suavidade e dor, entregue pelas tantas ilusões, pelos desvarios de querer voltar a sentir aquela vulgar condição humana que exclamava de meu espírito quando ainda era criança nas ruas de Antonina.
O ônibus seguia lento e eu, sem devaneios, segurava toda a ansiedade do azul monótono de Antonina. E depois de várias curvas lentas, logo lá embaixo, Antonina, aos poucos, aparecia adormecida, calma, patética, coberta por uma pequena névoa azulada, como se fosse uma fotografia antiga. Naquele momento ela era uma canção antiga, de rimas doloridas recheando um soneto de amor; um brinquedo esperançado para o dia de Natal; o paraíso e purgatório de minha tão distante infância, a última fronteira de minha felicidade.
Por fim o ônibus desceu a Serra. Através da janela eu acompanhava a vegetação rasteira, os muitos pinheiros, os arroios de águas límpidas e tranquilas que irrigavam os sítios e chácaras que se estendiam pela beira da estrada do São João. Sob uma ponte metálica, um riacho corria tranquilo e algumas meninas, na margem, cirandavam sob a sombra das árvores. Um menino, sorrateiro, atirou-se nas águas e, como um boto festeiro, tentou seduzi-las com arrojadas piruetas. Elas gargalharam, como se apreciassem o esmero do menino, mas era cedo, a noite não chegara, e todas voltaram aos motes de onde pararam.
O rigor monolítico daquela paisagem que eu tanto conhecia obrigava-me a mergulhar na vaga sensação de que tudo que se estendia à minha frente tinha uma representação, e isso era um consolo, pois para mim cada olhar tinha um sentir, como cada aventura tinha seu tédio, e que tudo eram dimensões, que tudo aquilo não passava de um estado de alma. E em busca desse paliativo eu seguia ansioso na direção de Antonina ou da fuga de mim mesmo, de meus próprios fantasmas, que caminhavam ao meu lado pelos rígidos caminhos da ilusão e do real.
O ônibus estava bem próximo do centro. Através da janela eu olhava as casas antigas, a rua de paralelepípedos - tudo era um sentir, uma rajada de lembranças. Abri a janela e logo senti o veranico em Antonina. O Sol perdera a plenitude e algumas nuvens impropriavam a tarde. O ônibus virou uma esquina, pegando outra rua, e me deparei com a antiga Ferroviária. O prédio, construído no final dos anos dez, em estilo inglês, ainda mantinha sua imponência, a torre do relógio, o sino, as placas de bronze homenageando seus construtores e políticos. Uma lembrança que me oprimia era a de Rosane, minha primeira namorada, acenando para mim da janela do vagão, num adeus definitivo. Lembrei das matinês nas tardes de domingo, da hesitação do toque das mãos e lamentei os beijos inocentes que não aconteceram em frente ao portão. Levei as mãos ao rosto e sorri, sem pensar em um grande fracasso, sem arrependimentos, pensando apenas em Rosane, em como ela estaria naquele instante em que uma aspereza na garganta preludiava o choro. A ficção era embalada pelo sonho, o passado era acompanhado de saudade e dor; uma dor útil e necessária abastecida de vida. As imagens se sucediam e eu as provava uma a uma, como se sentisse o sabor adocicado dos lábios de Rosane que eu nunca experimentei.
Duas quadras depois avistei o Grupo Escolar Brasílio Machado. Agora eu era aquele menino de avental branco correndo pelo pátio de areia, sob as castanheiras, atravessando o caminho de cimento que cortava a relva plana e subindo os degraus de mármore da escada larga. No corredor eu cruzava pelas professoras de guarda-pó branco levando em suas asteridades. a solidão das causas nobres. Segui meu destino e logo me deparei com o antigo Estádio do 29 de Maio. Não havia mais indícios da imponente arquibancada, mas ali estava eu sob a meta vendo a bola vindo na minha direção como uma águia ameaçadora.
Tudo o que via trazia-me a vida de volta, a imprecisão dos anos, o repouso de um sentimento de ternura ameaçadora, e tudo era tão íntimo e notório que eu não intervinha naquele entusiasmo que desalinhava meu presente e reconstituía meu passado. Mas, de súbito e contrafeito, as coisas à minha volta, me desmontavam de toda a lisura e quis por um instante deixar de amá-las, esquecê-las até.
Cheguei à Praça Coronel Macedo. Fazia um clima confortável e a praça, escrava do silêncio e do mercúrio, adormecia em volta do coreto sem retreta, dos bancos ermos de amor. Meus olhos não renunciavam a nada e, através das janelas das casas vizinhas, eu perseguia as silhuetas dos corpos, as vozes que se confundiam com as das televisões ligadas, o frescor da tarde que revigorava os ambientes e mais além, os quintais que adormeceriam no breu da noite. A tudo eu dava um sentindo, uma regularidade, como se toda a matéria fosse a expressão de meu estado de alma. Era um não-ver desencadeado por uma torrente de esperança que emergia de meu mundo sensível, como se eu fosse um pinheiro eriçado sobre a terra pantanosa. Tudo teve um sentido quando me deparei com a praça vazia... Ali encontrei o meu duplo amor e dei forma, feitio, ao meu dom atemporal para o viver e o sofrer.
As folhas caíam das árvores, leves e ociosas, e quando chegavam ao chão constatavam que o Sol alcançara o equinócio de março. Naquele instante não havia mais nada dentro de mim, restando-me apenas contemplar o ocaso do entardecer... Era Outono em Antonina...

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O JEKITI NOS ANOS 60 - foto do amigo Eduardo Nascimento

O JEKITI NOS ANOS 60 - foto do amigo Eduardo Nascimento