"Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica Antonina, não amo-te ao meio, amo-te à maneira inteira."
Edson Negromonte.



quinta-feira, 25 de novembro de 2010

CAIBRA

por Edson Negromonte

desenho de Federico Fellini

A primeira paisagem de Antonina, para quem chega por terra, é a zona de meretrício, no km 4. Antigamente, a zona era dividida em pobre e rica. A parte rica, conhecida como boate, era servida por mulheres jovens e bonitas, às vezes música ao vivo e uísque de origem duvidosa, paraguaio. A boate era frequentada pelos figurões locais, onde eles faziam questão de comemorar o aniversário, com o consentimento das esposas, mas depois da festinha em casa, junto à família. Isso nos anos 70, outros tempos. Voltando recentemente à cidade, percebi algo estranho: a boate não existe mais. Mas o que me deixou mais intrigado ainda foi o desaparecimento do morro no qual ela ficava instalada, como a guardiã moral dos cidadãos antoninenses. Como pode um morro sumir assim, sem mais nem menos? Perguntei aos amigos sobre o mistério da boate, do desaparecimento do morro e evasivas quase todas as respostas. A única plausível é a de que, depois que a boate foi extinta, devido à derrocada do movimento portuário, o morro foi tragado pela voracidade dos tratores das cidades vizinhas. Lembro-me, na década de 1980, enquanto comia um sonho na Lanchonete do Osvaldo, de receber das mãos de um cafetão um convidativo cartão: Pigalle, good girls, good drinks, good nights. Não pude deixar de sorrir diante da singeleza do inglês econômico, que eficiente dava o recado, tal e qual um velho blues. Dá até para imaginar John Lee Hooker, pedras entre os dentes podres, engrolando o refrão good gils, good drinks, good nights.
Talvez em decorrência da parte rica da zona se chamar Pigalle é que a parte pobre se chamasse Picão, assim apelidada por algum gozador. Até hoje o Picão está lá, encolhido, envergonhado, meia dúzia de casas de madeira, sem pintura recente, escuras, descascadas, entregue às moscas, porém resistente, as mulheres modorrentas sentadas à porta. Na adolescência, íamos, eu, Luiz Henrique, Geraldo, Maurício e Chico, ao Picão, em busca de diversão, bagunça, ar de malvados, tomar umas cervejas, dar risada à toa. Ninguém comia ninguém, estávamos quase sempre duros e a pouca grana que pintava era destinada às novidades do rock, Alice Cooper, David Bowie, Marc Bolan, Gary Glitter, o último do Pink Floyd.
A personalidade mais importante da zona era a Caibra, dona de uma das casas do Picão. Sempre atenta, olhos inquietos, um olho cuidava do gato enquanto o outro fritava bolinho, de vestidos vistosos, a boca rebocada de um vermelho incerto, gorda, excessivamente gorda, felliniana, Caibra era uma lenda para qualquer garoto. Além de lembrar as figuras dos filmes de Fellini, Caibra também remetia à "Balada da Gorda Margô", de François Villon, o poeta putanheiro. Corria, à boca pequena, que Caibra era mãe de uma moça belíssima, criada por uma família da cidade. Às vezes, ela ia visitar a filha, levar presentes, regalos, matar a saudade. Entre as famílias antoninenses era comum adotar os filhos das mulheres da vida, o que garantia um futuro melhor para as crianças.
Uma vez, já embriagado e, por isso mesmo, mais confiante, fui tirar uma onda com a Caibra que, outrora prestadora de bons serviços à população e à marinhagem, agora idosa, não transava com mais ninguém, somente administrando a casa e as suas meninas. Estava ela sentada a uma das mesas, com a mão gorda de dedos curtos pousada sobre o tampo, vigilante. Não sei por que cargas d'água, pareceu-me convidativa a velha senhora. Ora, para a minha cabeça tomada pelo álcool transar com a puta mais lendária de Antonina (até Maneco Diabo se referia a ela com respeito), seria um troféu. Romântico, como só um poeta maldito ousa ser, pousei delicadamente, como um namorado, minha mão sobre a mão da pachorrenta rameira, um convite para levá-la ao leito. Caibra revidou a carícia do cabeludo que eu era com um violento tapaço em minha mão boba. Refeito do susto, dei de cara com o olhar risonho de uma avó zombeteira.

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O JEKITI NOS ANOS 60 - foto do amigo Eduardo Nascimento

O JEKITI NOS ANOS 60 - foto do amigo Eduardo Nascimento