"Monocrômica, anacrônica, atraente, arcaica Antonina, não amo-te ao meio, amo-te à maneira inteira."
Edson Negromonte.



segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

OUTONO NAS ARAUCÁRIAS

DONA ARMINDA

por Luiz Henrique R. da Fonseca

Na varanda da casa antiga, dona Arminda fazia crochê, sentada em sua cadeira de embalo, esperando pelos filhos e netos que nunca a visitavam. Diante dela estava o jardim, com seus lírios, crisântemos e hortênsias, e uma pequena alameda de seixos rolados que se estendia até um muro baixo de pedra que contornava todo o casario. Um carteiro parou em frente ao portão e colocou uma correspondência na caixa-postal. Ela levantou-se e tentou gritar, mas o mensageiro partiu em seguida. Lentamente ela desceu os três degraus da escada e caminhou, olhando, investigativa, para a caixa do correio. Submissa e gelada, ela apanhou o envelope, rasgou-o e retornou à varanda, forçando o olhar, tentando ler o nome do remetente. Desassistida pela visão fraca, ela subiu a escada, procurando os óculos nos bolsos do vestido marrom de lã pesada, encontrando-os, em seguida, sobre uma mesinha ao lado da cadeira de vime. Com certa ansiedade, colocou os óculos e começou a ler... A cada trecho ela se inquietava, sem tirar os olhos da carta, tentando decifrar o que havia nas entrelinhas. Depois que terminou, vertiginosa, apoiou-se no parapeito da sacada e olhou o céu, como numa oração. Os olhos giraram, num pensamento, e voltou a sentar-se, apoiando a cabeça branca no encosto alto da cadeira, pensativa, emblemática, apertando a carta em seu ventre.
Por alguns minutos ela ficou ali, imóvel, sentindo os rumores do passado, idealizando o que fazer com aquela notícia. De repente os olhos cresceram, num desassossego, levantou-se e entrou em casa. Em menos de um minuto as janelas começaram a se abrir, enfunando as cortinas de seda; e ela, de espanador nas mãos, começou a limpar os móveis, arejar a casa, como se todo aquele esforço fosse para receber alguém que há muitos anos não via.
Havia no olhar de dona Arminda uma lucidez, uma energia, mas às vezes ficavam mornos, olhando para além do nada, como que somando, subtraindo, multiplicando diversas vezes o produto daquela notícia. Depois de tanto esforço, dividiu-se entre o rancor e uma alegria fingida, entre o amor e o tormento e, por fim, sentiu seu tempo e seu espaço, sorrindo, assistida, olhando para a carta que acabara de tirar do bolso do vestido.
Os dias se sucederam agônicos e ela, delicada, escolhia, com rigor algumas flores e plantas com o intuito de quebrar o ambiente lúgubre da casa. Lenta e delicada, ela caminhou pela aleia, conferindo o odor das flores, analisando as folhagens com extrema atenção. Assim que subiu os três degraus da varanda, voltou-se para trás e olhou para a esquina e suspirou, como se quisesse receber o milagre do tempo.
Os minutos escorriam e ela, em meio a sua paz homicida, em seu amor feito de dor e esperança, borrifava as folhagens. Sem demonstrar cansaço ela conferia tudo com zelo e reflexão. Debruçou-se no parapeito da varanda e com longos suspiros refrigerou os pulmões. O olhar ávido anunciava que a visita estava próxima, e ela, tentando revigorava-se com o sol nas faces, consolava-se com as coisas miúdas à sua volta. De súbito, surpreendeu-se com um devaneio, mas conteve o ímpeto, censurando-se, como se nada além daquela prosaica solidão fosse-lhe permitido.
Embora a lucidez a tivesse freado, mesmo assim, manteve-se morna e distante, arguindo a razão, dizendo para si que há muito vivera conforme a imposição de seu feitio reto e vertical. Revestida de um pouco de dúvida, ela viajava nos sonhos, concebendo que perto dali havia uma estação, e ele chegaria, depois dobraria a esquina, trazendo rosas vermelhas nas mãos. Entre recuos e avanços, ela, perfilada ainda na varanda da casa antiga, seguia com suas crônicas, cânticos e rezas, tentando aproximar-se humildemente de seus desejos, sem um segundo sequer deixar de lutar contra a inerência da solidão.
A idade e os anos parcos que havia pela frente a oprimiam, mas ela mantinha-se estável e equidistante - apenas um pouco preocupada com comentários em família. Sorrindo de algum pensamento bobo, ela meneou a cabeça, concebendo uma definição, e em seguida virou-se para a casa, avaliando as lembranças grudadas nas paredes. Dividida, sentou-se lentamente, cheia de preocupações, girando o olhar, nervosa, como se quisesse conter o choro. Imóvel e com olhar ao longe, ela vasculhava-se indefinidamente, apertando os lábios, que ora aguçavam esperançosos, ora reprimiam-se, desiludidos. A manhã lenta e casual impunha-lhe uma reforma nos sentidos, e ela, sensível e cautelosa, ainda tímida e temerosa, olhava para o fim da rua sem saber se seria vítima ou algoz daquela paixão do passado.
Tomada de pureza e dor, ela levantou-se e entrou na casa. Sobre o aparador pegou o retrato do marido e o acalantou juntou ao peito, como se dissesse a ele que não podia mais viver apenas das lembranças. Hermeticamente depositou o retrato e começou sua peregrinação pela sala, deslizando as mãos sobre os móveis antigos, perscrutando o que os fantasmas lhe diziam. Movimentando-se pela penumbra, ela formava imagens e ouvia as vozes do passado - a família reunida no almoço de domingo, os natais, os aniversários - tentando restabelecer uma nova formar de viver. Distraída, pegou-se vaidosa em frente ao espelho e, por um momento, sentiu-se insegura, frívola, com a aparência. Pensou em pitar os cabelos, comprar roupas novas e ser menos velha. Deslizou as mãos pelo rosto e, pondo-se a ideias vagas, contou todas as marcas, as rugas, lembrando-se dos momentos em que era jovem, quando amar não impunha às dúvidas.
Delicadamente e quieta, ela ajeitou as flores nos vasos, sentindo suas dúvidas, o medo de não conseguir, depois de muitos anos, domar todo sentimento, a ansiedade que residia nos olhos que fitavam a esquina. Enquanto as lembranças fragmentavam-se, o frescor higiênico da casa a tranquilizava, e ela, com olhos voadores, dividia-se entre a arrumação da sala e a ponta da plataforma da estação. Tentando conter a ansiedade, com leves incursões, fazia de conta que tudo estava como dantes, mas surpreendia-se olhando para a esquina, e depois se arrefecia, entendendo de que nada adiantaria precipitar o que o destino havia programado. De súbito, a dúvida a invadiu e ela perdeu-se nos pensamentos, temendo que ele não viesse por arrependimento ou por algum imprevisto. Dentro de uma caixinha de miudezas ela apanhou a carta e, atenta às entrelinhas, sem encontrar motivos aparentes para preocupações, sorriu, e em seguida colocou-a de volta na caixa. Segundo o que lera, realmente não havia o que temer, a vinda era inevitável e ela, mais solta, voltou a sorrir.
Com algum desamparo e infortunada pela espera, ela sentiu a manhã e olhou outra vez para a esquina. Foi à cozinha preparar seu almoço solitário. Não sentia fome, estava disposta a comer salada e um pedaço de filé de frango. Metodicamente ela cortava as verduras e arrumava-as numa travessa, borrifando um pouco de limão sobre as folhas coloridas. O frango estava mergulhando numa pequena vasilha com claras e a farinha estava num pote, dentro armário. Qualquer barulho, sensação, era motivo para ela parar com tudo e, cuidadosamente, concentrar os sentidos lá fora, até que a dúvida dissipasse. Não havia motivo para tanta ansiedade, pois a carta anunciara que ainda faltavam alguns dias para a visita chegar. Mas, para quem foi arremessada de sua vida solitária para um amor do passado, toda e qualquer sensação gerava angústia, dúvidas e repreensões, principalmente quando ela se deparava com os retratos espalhados pela casa, época em que tudo fazia sentido, quando tudo era sólido e harmônico, uma fortaleza de muros altos e intransponíveis.
Sobre a pequena mesa da cozinha ela colocou o prato com saladas e um filé de frango à milanesa. Olhou em volta, depois olhou para a cadeira vazia e sentiu a presença do marido. Atingida pelas lembranças, por um instante, ela compactuou com aquele olhar repousado em seus olhos, enquanto ele a ouvia falar sobre as coisas pequenas do dia-a-dia. Mas todas as lembranças expostas à sua frente não a oprimiam o suficiente para ansiar a chegada do emissor daquela carta. Era preciso apaziguar a escolha que fizera, era necessário revidar a hostilidade que em todos esses anos ela escondeu na alma, antes que os olhos se fechassem de vez. Mesmo sem frescor, ela continuou dividindo-se entre as lembranças, a ansiedade da espera e a trivialidade da comida. Por um momento ela permitiu-se a um fluxo mais forte em sua corrente sanguínea quando se imaginou deitada na cama, dividindo-a com aquele homem que haveria de chegar. Sorriu do pensamento bobo e tentou se desvencilhar do constrangimento. Mas tudo a imobilizava, em síncopes frenéticos, imaginando como sua pele reagiria quando ele a tocasse.
Áspera e surpresa, levantou-se e levou o prato até à pia. Jogou o resto de comida na lixeira e sem pensamentos, sentiu a manhã se esvair pela pequena janela da cozinha. Depois que tudo ficou arejado, ela se despediu dos olhos repousados do marido e seguiu para a varanda.
Na cadeira de vime ela decifrava-se, em meio às recordações e desagrados. Mas a fome era intensa, o vazio e o silêncio eram sentimentos necessários, próximos e equidistantes, como se tudo estivesse perto dos olhos, mas distante do alcance das mãos. Com os olhos perplexos em algum canto do jardim, ela pegou-se sorrindo, como se desdenhasse seus medos e culpas; em seguida desmanchou o coque que prendia os cabelos, meneou a cabeça para deixá-los mais soltos e olhou adiante. Um casal cruzava a rua, o sol lapidava a parede da casa de esquina; não havia sombras em seu mundo sensível, apenas a ansiedade por alguém que tardava a completar aquela paisagem.
Ela não acreditava como poderia esperançar tanto, olhando para o final da rua, para a esquina que dobraria o amor. O rosto continuava aflito, e, como se cobrisse toda a sua nudez, foi ao encontro de si, fechando-se para o sonho. Às vezes se descobria, acreditando na sede, na fome do amor, mas depois voltava para algum canto qualquer de seu corpo e adormecia persuadida pela razão. Mas, antes de entrar, ela, frágil e perdida, entregou-se às evidências de seus sentimentos e, sem se violentar, olhou para a esquina.
De repente o Sol cortou em diagonal a tarde e ela desligou-se de tudo, quando viu um senhor de terno marrom e chapéu na cabeça parar em frente ao portão. Ele trazia flores nas mãos e sonhos na cabeça. Bateu palmas e esperou, olhando a casa com olhos curiosos. Dona Arminda apareceu na varanda com os olhos iluminados e ele, ao vê-la, obsequioso, tirou o chapéu. Ela desceu as escadas, querendo ser veloz, e caminhou pela aleia, equilibrando-se na ansiedade. Assim que ela abriu o portão os olhares trocaram rimas de sonetos de amor e a tarde estagnou...
Cada um procurava equilibrar-se na emoção, contendo as mãos, refrigerando o pulmão para não serem violados pelas palavras inúteis. Com o chapéu na mão, ele ofertou-lhe as flores e, com um sorriso de quem colhia rosas, ela agradeceu a gentileza e o fez entrar. Ingênuos e delicados os dois caminhavam, conversando, trocando olhares indecisos, até chegarem à varanda. Ela o fez sentar e disse que voltaria logo com uma bandeja de chá.
Os segundos passavam, enquanto ele preparava seus planos ao lado dela, sem pensar em desastres, em tormentos. Assim que ela chegou, ele levantou-se, e, mais uma vez, obsequioso, ajudou-a com a bandeja de chá. Sentindo-se mais solta, ela o servia, enquanto ele, impreciso, acomodava o chapéu para poder receber a xícara de chá. Ela não se serviu, apenas sentou-se e olhou nos olhos dele, na mão trêmula que levava a xícara à boca, e por um momento o passado tornou-se frívolo e trivial, ela o havia perdoado. Sentindo o olhar ameno sobre si, ele depositou a xícara sobre a bandeja e arrefeceu-se de toda ansiedade. Amavelmente eles se olhavam e a vida não era mais oca, o mundo não os feria mais. Tudo que se estendia lá fora se precipitava sem minúcias e o tempo era impessoal, mas veloz. Entre o silêncio e as palavras, um pensamento indeciso os machucava, forçando-os a visualizarem um futuro. Então, com o ar humilde, ele encarou-a, e ela, com os olhos em órbitas, arrastava-se em risos e ensaios. Ele discorreu um assunto e ela, depois de um devaneio calculado, assentiu com a cabeça. Ele sorriu, estendendo a mão para ela, como se dissesse para caminharem juntos. Ela acatou o gesto, e as mãos nunca mais se desgrudaram naquela tarde...

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O JEKITI NOS ANOS 60 - foto do amigo Eduardo Nascimento

O JEKITI NOS ANOS 60 - foto do amigo Eduardo Nascimento